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Ilustração original de BAR |
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Alô, você que se liga no Óciocast. Eu sou a Maricota. O Xikowisk tá com um galho no microfone e me pediu pra gravar este episódio.
Hoje, começamos a iniciativa de Contagem de Histórias do Óciocast com o conto, vencedor do Concurso "A Bandeira do Elefante e da Arara RPG", promovido pela página da REDERPG, com o patrocínio de A Bandeira do Elefante e da Arara.
Pedi para o Zezinho lè-lo pra vocês. Divirta-se.
Muiraquitã, de Simone Saueressig.
Maria Mandioca.
Preta, puta e feia. A puta mais feia das que trabalhavam no porto. Mirrada de dar dó. Olhos de fome. Boca caída. Mal saiu da infância na cozinha da casa, abortou. Foi o primeiro. Depois do terceiro natimorto, a mulher mais velha da senzala disse que se sobrevivesse àquela sangria, nunca mais teria filhos.
Maria sobreviveu.
A dona da casa, esposa do dono da fazenda de cana-de-açúcar, disse que não queria mais a negra na sua redondeza. “Traste”, foi o que ela disse. O senhor do engenho não quis perder o negócio, então a enviou para uma casa de meretrício, que lhe garantia algum lucro na venda direta da cachaça que produzia no engenho, aos marinheiros portugueses. O gerente era um conhecido seu. Dividiam os lucros.
Maria Madioca era das que dava menos renda. Só os mais pobres e porcos iam com ela. A moça não falava nada. Ficava com os olhos parados, olhando o teto, enquanto eles iam e vinham dentro dela, uma certa sofreguidão, uma certa urgência. No começo, até contavam quantos homens tinha atendido – o gerente era meio maníaco por manter contagem de tudo, e o dono deles, de Maria, do gerente, do engenho, também gostava das contas bem claras – mas depois foram deixando pra lá. Maria contou até o sexto. Dali em diante não sabia o nome de número algum. Mas quando suas contas chegaram à dez mãos fechadas, decidiu duas coisas: seu nome não era Maria Mandioca, e aquele seria o último homem. Quando ele terminou e rolou de cima dela, respirando aos arrancos, ela levantou silenciosa, agarrou o facão dele ao lado das calças arriadas ao lado do monte de palhas sujas onde tinham se deitado e antes que ele esboçasse um movimento, degolou-o.
Depois sentou, quietinha, olhando o sujeito e até chorou um pouco: era o moço mais bonito que já tinha tido entre suas pernas, era o primeiro homem que matara, e fora o único a subir nela que tinha todos os dentes na boca. Mas como o tempo não para, ela logo se refez, pegou as roupas dele e as vestiu: a sorte é que o gajo tinha mais ou menos o seu tamanho. Só as botas ficaram grandes, mas o resto até que era confortável. Ela enterrou o chapéu na cabeça e, como vira muitos deles fazer para escapar sem pagar por um prazer tão ruim, pulou a janela e caiu no beco atrás da casa, sentindo debaixo dos sapatos, a lama fedida do cais se remover.
E se apoiou na parede, olhando o final do beco com medo e algo feroz, que ainda não tinha nome, tonta de liberdade.
“Eu vou morrer”, ela pensou. E depois “mas não aqui”. E depois, ainda “não hoje”.
Fugiu. Quando o dia nasceu já estava longe, se arrastando como dava pelas margens de um rio que lindava com as muralhas do Mosteiro de São Bento. Nunca soube como não a encontraram – talvez o homem que tinha matado não fosse assim tão importante, talvez fosse porque a saudação à Ogum e Iansã estivessem sempre nos seus lábios: o guerreiro que abre os caminhos, a rainha que manda na guerra. E quando finalmente a floresta a acolheu em sua sombra, a floresta de verdade, ela não esqueceu de agradecer. Tinha uma fome atroz – mas com isso já estava acostumada – e um medo gigantesco que se multiplicou no silêncio sombrio da mata. Não sabia onde estava, não sabia para onde ia. Todo seu corpo tremia de pavor, entendendo que ali mais adiante ouviria o latido dos cães a sua procura. Mas também entendia que estava livre, livre até a morte, fosse ela quando fosse. Lembrou de um homem que vira uma vez, quando acompanhou uma das escravas que vendia doces junto à igreja, para maior riqueza do seu dono. Era um negro de porte majestoso, que passou pela vendedora e sorriu um pouco. Atrás dele vinha um bandeirante de cabelos vermelhos e gibão azul, um chapéu de aba larga e pluma esvoaçante. Maria seguiu a sombra dos dois com olhos de inveja, porque sabia que Oludara tinha sido alforriado um dia por Gerard von Oost, os dois aventureiros da Bandeira do Elefante e da Arara que tinham salvo Olinda de uma criatura conhecida como Pai do Mato ainda no ano anterior.
Para os homens, eram dias de aventura. Sob o sol, o mundo era o mapa sobre o qual caminhavam sem receio.
Para as mulheres, eram dias de sempre. Nas sombras quietas do medo, o mundo era a casa fechada onde rezavam, coziam e pariam com dor.
Ela decidiu que seus dias, fossem quantos fossem, seriam como ela quisesse, onde quisesse. E assim, pôs o medo de lado e mergulhou na floresta e suas mil maneiras de morrer.
Maria Mandioca sobreviveu a isso. Tinha ouvidos bons e o que tinha ouvido dos homens na barra do puteiro, enquanto eles se embebedavam com pinga ruim, lhe deu algum alento para continuar. De milagre em milagre, de golpe de sorte em golpe de sorte, Maria conseguiu vencer as distâncias gigantescas daquela terra sem fim e sem lei, mas já com donos de vidas e mortes. Por onde ia, vestia-se assim, como um rapaz, e se tivesse de entrar em um vilarejo, o fazia à discrição, já quase caída a noite. Não falava com ninguém. Com o tempo, a voz, que antes mal tinha usado, desapareceu dentro dela atrofiada de silêncio. Quem a via, pensava no negrinho de algum senhor que logo apareceria com uma bandeira, em busca de índios, de pedras preciosas, de alguma tropilha perdida de cavalos, e quanto mais ao norte ela ia, mais falavam no rio que parecia um mar e no reino do El Dorado.
Quieta, Maria deslizava entre os casebres de pau a pique e telhado de sapé, e logo que podia se refugiava nas sombras das árvores gigantes.
E assim foi, até que chegou o dia em que se deparou com Memby.
Foi em uma praia muito, muito distante, mata a dentro, terra a dentro, continente a dentro. Maria Mandioca já sabia usar o facão, arco e flecha e a remar canoa, já sabia o que comer e o que caçar. Seu corpo era pequeno mas já não era mirrado, e mesmo que não soubesse, seus olhos não tinham mais aquela fome perpétua. Seu braço, agora, tinha força e, seu passo, a segurança de quem sabe que o próximo, se for o último, será bem dado.
Maria tinha, agora, outra gana, mas ela não sabia disso. Talvez ainda fosse feia. Mas Memby não viu isso.
Memby era alta e forte. Os cabelos longos e pretos estavam presos na nuca e vestia o corpo apenas com o maior arco do que Maria jamais vira, e uma aljava de flechas, que acomodava nas costas. A tira transpassava o peito direito, amputado quando era ainda uma mocinha e a cicatriz era um talho branco sobre a pele clara. O seio esquerdo era uma afronta, de tão belo.
Memby era icamiaba.
Maria Mandioca olhou Memby e pensou que a morte pode ser bela.
Memby olhou Maria Mandioca e achou que tinham encontrado o homem que lhe daria o próximo filho.
O embate foi terrível. O vento dos golpes chacoalhou as ramas mais baixas e, nas águas do rio, surubim fugiu, uma sombra prata dentro das águas escuras. Tartaruga nadou pra longe. Nem jacaré ficou esperando para ver quem sobrava para devorar, quem sabe, o corpo nos últimos suspiros. Era como a luta entre duas onças, uma escura e outra clara, duas feras de força, agilidade e beleza. E como reza a tradição, foi a icamiaba que terminou vencendo, ofegante, suada, um sorriso vibrando na cara bonita, e em toda ela estava a beleza da floresta e seus filhos.
Deitada de costas na areia clara, Maria Mandioca achou que era a morte, enfim, a morte que tinha chegado, e que as mãos claras que empurravam seus ombros não tardariam por sufocá-la. Daí que seus olhos brilhavam já com a noite escapada da semente da tucumã e não havia muito o que fazer: ela escorregou as mãos por entre os braços fortes da guerreira e segurou seu rosto e a puxou e a beijou, porque se era para morrer, que fosse com o que nenhum dos homens que tinham estado dentro ela, jamais tinha lhe dado. Maria Mandioca beijou a icamiaba, e Memby se esqueceu de tudo, e a luta virou outra coisa, e quando descobriu que o moço era uma moça era tarde demais, e o coração da guerreira tinha se rendido à coragem, à força e a raça da vencida.
Foi uma longa noite bela. Maria descobriu, surpresa, que havia algo de bom nos braços de outro ser humano. Memby descobriu, surpresa, que havia mais prazeres entre os seres humanos, do que imaginava até então.
Quando o sol nasceu, Memby levou Maria para a sua cabana, na cidade das icamiabas. E era um pouco estranho ver aquelas mulheres valentes cuidando de suas filhas maiores e dividindo suas casas com amantes que tinham trazido consigo de outras tribos. Guerreiros de muitas nações, fortes, valentes, domados pelas donas de seus corações e desejos. Havia até um espanhol, que todas as manhãs se açoitava, e guardava com cuidado uma batina escura como breu. As noites eram boas, doces e quentes. Os dias longos, iluminados e bons. Algumas mulheres olhavam com desconfiança para Maria, mas não diziam nada. Memby as encarava com vigor e se alguém tivesse pensado em dizer algo, dava de ombros e seguia com seus afazeres. Afinal de contas, ninguém tinha nada que ver com aquilo. Desde que Memby concebesse, tudo estaria bem.
Mas, é claro, o ventre da icamiaba teimava em manter-se plano.
Então, um dia, Memby desapareceu. Voltou duas noites depois, cansada e quieta, muito séria. Levou algum tempo até que o sorriso voltar a se abrir nela. Talvez um ou dois beijos, ou um ou dois carinhos. O que se sabe é que naquela noite, as duas ficaram abraçadas e não dormiram, apenas ficaram ali, balançando a rede de leve, olho no olho, e todos os sonhos passando por eles. E o ventre de Memby, enfim, cresceu, sua teta encheu-se de leite. Ela ficou cansada, pesada e às vezes de mau humor.
E um dia, os gêmeos nasceram: um menino e uma menina. Porque, afinal de contas, tinha de ser assim. Nunca antes o coração de Maria Mandioca se encheu de tanto amor quanto naquele momento em que segurou junto ao peito seco os filhos de sua mulher. As duas guerreiras choraram juntas e finalmente Maria soube que aquela coisa feroz que sentira na noite em que tinha pulado a janela, tinha voltado e trazido seu nome com ela: felicidade.
Quando Memby voltou a andar, ela embrulhou o menino em um pano alvo, feito com a lã de um bicho que vivia muito longe dali, e na primeira Lua Cheia depois de dar a luz, levou seu filho e a sua esposa, a outra mãe dele, para longe da aldeia. Pararam junto a um remanso de rio onde havia uma piroga de bom tamanho, cheia de mantimentos, e uma cesta repleta de metal dourado. Memby colocou o filho no fundo do barco e se voltou para sua mulher. Maria apertou os lábios e chorou um pouco quando sua esposa tirou da aljava uma pedra da cor da mata: lama verde da lagoa encantada, de onde as icamiabas tiram o material para fazer o muiraquitã sacralizado pelo rio-mar e pela luz de Cairé, o lua cheia, que é fiel guerreiro de Rudá, o deus do amor. Memby colocou o presente no pescoço de Maria, beijou-a pela última vez e, antes que o filho reclamasse o seu leite, deu as costas para a sua família e entrou na mata, que se fechou como uma muralha atrás dela. Não voltou os olhos nenhuma vez. Talvez soubesse que se fizesse isso, não poderia partir jamais, e isso seria o fim do amor de sua vida.
Seja como for, foi desse jeito que minha mãe voltou para a cidades dos brancos de posse de um filho e do seu verdadeiro nome: Maria Tucumã, dona de terras compradas a ouro e sangue, senhora de engenhos, de vidas e mortes sobre elas. E eu, que vim com ela, envolto em lã de lhama branca, tenho orgulho de dizer que essa pele que me cobre não é branca, nem negra, nem parda.
É cor do que um dia será Brasil.
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